Documentos públicos devem ser adaptados às famílias homotransafetivas conforme jurisprudência do STF, opina PGR

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Em decorrência da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) relativa a direitos de pessoas LGBTQIAP+, em especial daquela relativa à possibilidade de alteração, no registro civil, de prenome e gênero de pessoas transexuais mesmo sem cirurgia de transgenitalização, o procurador-geral da República, Augusto Aras, defende que formulários e documentos públicos devem ser adaptados, em respeito à autoidentificação de gênero parental e às formações familiares homo e transafetivas. A manifestação foi na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 899.

No processo, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) questiona a persistência do poder público em exigir nos sistemas de registros informações sobre “pai” e “mãe”, o que, na avaliação da entidade, gera entraves à cidadania de famílias não heteronormativas.

A Constituição Federal, segundo Aras, não previu expressamente a existência jurídica de configurações familiares diversas e as consequências práticas delas, o que resultou na busca, por indivíduos do mesmo sexo que mantinham relacionamentos afetivos, de acesso ao Poder Judiciário em defesa do “direito a ter direitos”. Nesse sentido, o PGR lembra que o STF reconheceu a viabilidade jurídica da união civil entre casais homoafetivos – a partir dos julgamentos da ADI 4.277 e da ADPF 132 –, “fixando um importante marco jurisprudencial para que as questões de gênero também recebessem tratamento jurídico adequado”.

Diante desse cenário, Aras destaca que atos infralegais emanados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passaram a balizar matéria sobre o Registro Civil de Pessoa Natural (RCPN), trilhando a formalização e a documentação das situações das famílias plurais. Como exemplo, o PGR cita a Resolução 175/2013, que dispõe sobre a habilitação, a celebração de casamentos civis e a conversão de uniões estáveis em casamentos entre pessoas do mesmo sexo, viabilizando a implementação do direito garantido pelo Supremo nas ações já citadas e em outros julgados.

No entanto, quanto à situação especifica da ADPF 899, o procurador-geral pontua que há dualidade burocrática a ser debatida. De um lado, é permitida a constituição do núcleo familiar e a procedência aos registros competentes juntos ao RCPN, e, de outro, há sistemas públicos desatualizados que impedem a descrição fidedigna da família e da parentalidade. Sobre a questão, a entidade autora da arguição menciona a Declaração de Nascido Vivo (DNV), o Registro Geral (Carteira de Identidade), o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS).

Para o procurador-geral, famílias homotransparentais devem receber a mesma proteção jurídica conferida às configurações familiares heteronormativas, inclusive com designação adequada de gênero em documentos e formulários oficiais. “A organização e o procedimento adotados pelo CNJ e pelos RCPNs não parece ser observados por outras esferas públicas, que não concedem tratamento isonômico entre configurações familiares heteronormativas e demais estruturas familiares juridicamente reconhecidas”, afirma.

Adequações – Na manifestação, o PGR destaca que, enquanto as certidões de nascimento, de casamento e de óbito estão uniformizadas e em constante aprimoramento, formulários correlatos – como a DNV, que precede a lavra da certidão de nascimento – não apresentam padronização e, por vezes, sequer trazem campo específico ou neutro para a identificação de pessoa LGBTQIAP+.

Assim, Aras defende que o poder público deve respeitar a autoidentificação de gênero parental em todos os formulários e documentos oficiais, sendo preservadas as informações sobre origem biológica tanto por reprodução assistida quanto por inseminação caseira; e que os mesmos documentos devem contemplar a possibilidade da dupla parentalidade por pessoas do mesmo gênero, resguardando dados sobre matriz genética.

Quanto à DNV, Augusto Aras sugere que seja conferida interpretação conforme à Constituição à legislação que a normatiza, devendo o registro ser adequado para contemplar a dupla parentalidade e trazer no lugar de “mãe”, a categoria “parturiente” e no lugar de “pai”, a categoria “responsável legal”, sem prejuízos do direito da criança à identidade genética. “A neutralidade de gênero da DNV há de assegurar o respeito à identidade da parturiente e de eventual responsável legal, viabilizando a lavratura de certidão de nascimento sem entraves burocráticos relativos à designação anteriormente adotada no layout”, pontua.

Íntegra da manifestação na ADPF 899