Mirelle Gonsalez Maciel, advogada criminalista, é quem assina o texto desta quinta-feira (27), publicado na coluna Defesa Criminal. Ela escreve sobre a utilização de antecedentes criminais como argumento de condenação no Tribunal do Júri que, para ela, levanta sérias questões sobre imparcialidade e respeito às garantias constitucionais.
Conforme a autora, a prática pode influenciar indevidamente os jurados, comprometendo a plenitude da defesa e desviando o julgamento do fato para o histórico do réu. O artigo discute como essa abordagem colide com os princípios do Direito Penal do Fato e os riscos de nulidade do julgamento.

Leia a íntegra do texto e entenda os impactos dessa controvérsia no sistema de justiça:
Existem algumas questões que ainda carecem de especial atenção por parte daqueles que anseiam a consolidação de um Estado de Direito pautado no respeito às garantias constitucionais. Dentre elas, destaca-se: a abrangência do uso de antecedentes criminais como elemento de convicção perante o julgamento do Tribunal do júri.
Para além da formalidade litúrgica, devida coerência com retórica, oratória e domínio de teses, ainda se milita com a dificuldade da prisão imediata. Afinal, na seara da sessão plenária, a prisão imediata, com fulcro no tema 1086 do STF, é certa em caso de condenação ao final da solenidade de julgamento.
Sobressai, como ponto crítico, o fato de que, não raras as vezes, os representantes da acusação, quando da súplica por condenação, exibem os antecedentes da pessoa submetida ao tribunal do júri como troféu. Ora, é inglório imaginar ser possível que os dados não influenciem os jurados.
Partindo desta premissa de que até́ mesmo os juízes togados têm dificuldades para analisar o material probatório de forma neutra, pois a inicial compreensão que o magistrado tem a respeito dos fatos e das coisas influenciam, ainda que inconscientemente, sua decisão, com os jurados tal influencia pode ser forçosa.
A decisão dos jurados não necessita de fundamentação jurídica, apoiada tão somente em íntima convicção, revelada por uma cédula simples de SIM ou NÃO. Os cidadãos denominados juízes de fato, em regra, são pessoas leigas e formam seu veredicto baseado nos argumentos de acusação e defesa, após a instrução no plenário. Desta forma, partir do histórico criminal do réu para persuadir a decisão acerca do julgamento do fato não se mostra coerente, mormente porque os preceitos constitucionais inviabilizam a responsabilidade criminal pelo direito penal do autor. Vigora o direito penal do fato.[1]
Embora o art. 478 do Código de Processo Penal seja omisso quanto à vedação desta utilização, o legislador reconheceu, expressamente, que a referência à pronúncia, ou decisões posteriores, que admitiram a acusação, como argumento de autoridade, são prejudiciais a um julgamento imparcial. Contudo, certo é que a interpretação não deve ser literal.
Para além do elencado no referido artigo, qualquer outra linha argumentativa com finalidade persuasiva, mas que possa induzir o jurado a erro, implicará nulidade de julgamento. A diferença é que, nas hipóteses dos incisos I e II do novo art. 478, demonstrada a situação de base – o acusado foi pronunciado, ou está algemado, ou, ainda, permaneceu em silêncio, o que indica que seja culpado –, haverá nulidade, posto que o legislador, previamente, considera que neste caso vislumbra-se evidente prejuízo. No entanto, em qualquer outra hipótese, desde que se demonstre concretamente que as linhas argumentativas seguidas pelas partes efetivamente influenciaram, de forma indevida e ardilosa, o convencimento dos jurados, a nulidade também há de ser reconhecida.
Resta claro, portanto, que na busca pelo julgamento escorreito, os antecedentes do réu não sustenta qualquer acuidade para o julgamento da conduta, mormente se ele não integrar a força probatória, no trinômio, tipicidade, ilicitude e culpabilidade.
O fato de já ter anotações em seu passado não é elemento a ser julgado. A utilização destas informações apenas fomenta o preconceito e repulsa do jurado (cidadão denominado de bem) com o seu próximo, colocado a julgamento.
Nota-se, assim, que a vedação do uso de antecedentes criminais como argumento de autoridade no tribunal do júri fortalece as garantias constitucionais, em especial a plenitude de defesa, esta que, por definição, consiste na garantia de que o acusado terá todos os meios legais e materiais necessários para se defender, de forma ampla e eficaz, no processo, além de consolidar o sistema de justiça, moderando o julgamento, de modo que haja equilíbrio e oportunidades mais adequadas para todos os envolvidos.
É certo que são tempos sombrios para os militantes do tribunal do júri, onde a soberania do veredicto é aplicada in contrassenso e in malam partem do referido princípio. Mas isto é tema para outra hora.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1941. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 20 fev. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (Quinta Turma) – AgRg nos EDcl no HABEAS CORPUS Nº 920362 – RS (2024/0207573-7). Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Julgamento em: 02 de setembro de 2024. Diário da Justiça Eletrônico, 04 de setembro de 2024. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202402075737&dt_publicacao=04/09/2024>. Acesso em: 20 fev. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1086 – Permanência de símbolos religiosos em órgãos públicos e laicidade do Estado. Relator: Ministro Cristiano Zanin. Julgamento em: 26 de novembro de 2024. Diário da Justiça Eletrônico, 02 de dezembro de 2024. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5827249&numeroProcesso=1249095&classeProcesso=ARE&numeroTema=1086>. Acesso em: 20 fev. .2025.
[1] “O fato não se torna típico, antijurídico e culpável por uma circunstância referente ao autor ou aos seus antecedentes, mesmo porque, se assim o fosse, estaríamos perpetuando a aplicação do Direito Penal do Autor, e não o Direito Penal do Fato”. (RHC n. 80.551/RS).