Mateus Fernandes Soares, advogado criminalista, é quem assina a coluna desta segunda-feira (4). Ele escreve sobre o acordo de não persecução penal (ANPP) pós a decisão do STF no HC 185.913/DF e a Teoria dos Jogos.

Leia a íntegra do texto:
O acordo de não persecução penal é um instituto penal despenalizador, ou seja, ele prevê a substituição das penas privativas de liberdade por outras medidas menos gravosas. Primeiramente, o acordo de não persecução penal foi criado por meio de uma resolução do Conselho Nacional do Ministério Público.
O Ministério Público propõe o acordo com as condições específicas, o acusado confessa o crime e aceita as condições impostas e o juiz possui a função meramente homologatória e fiscalizatória do cumprimento das obrigações assumidas.
O acordo de não persecução penal foi institucionalizado no ordenamento jurídico brasileiro com a promulgação da lei nº 13.964/2019, também conhecida como lei do Pacote Anticrime. Essa norma jurídica acrescentou o artigo 28A ao Código de Processo Penal com a previsão legal desse instituto jurídico.
Em relação à natureza jurídica do instituto, trata-se de norma processual penal mista, ou seja, apesar de estar prevista na legislação processual, a norma trata de direitos e garantias fundamentais. Assim sendo, a norma pode retroagir para beneficiar os réus nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal: “Art. 5º, XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”
O artigo 28-A do Código de Processo Penal traz os pressupostos objetivos e subjetivos para que o acordo possa ser oferecido:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940;
IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito;
V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Além dos pressupostos citados, o artigo 28-A, §2º, do Código de Processo Penal veda a propositura de acordo de não persecução penal quando for possível a transação no âmbito dos juizados, houver indícios de habitualidade criminosa, o agente tiver sido beneficiado nos últimos 5 anos com alguma das medidas despenalizadoras previstas na Lei 9.099/95 e o caso não pode envolver violência doméstica contra a mulher.
Com a institucionalização do instituto, a grande celeuma jurídica formada foi sobre a aplicabilidade do instituto aos processos penais em andamento ou não. O próprio Pacote Anticrime traz como marco temporal que o acordo de não persecução penal deve ser ofertado e formalizado até o recebimento da denúncia pelo juízo criminal, sob pena de preclusão temporal para o oferecimento da proposta. Em torno desta discussão gravitou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal até a decisão do habeas corpus nº HC 185.913/DF conforme ver-se-á a seguir.
Processos em andamento na data da entrada em vigor da lei nº 13.964/2019
No âmbito do Supremo Tribunal Federal formaram-se duas correntes de interpretação completamente distintas sobre a natureza jurídica do acordo de não persecução penal entre a 1ª Turma e a 2ª Turma.
A 1ª Turma havia firmado o entendimento pela aplicabilidade para os processos em curso desde que o acordo de não persecução penal fosse requerido até a prolação da sentença penal condenatória. Nesse sentido, é ilustrativo o julgado do HC 233.147/SP cuja relatoria coube ao Ministro Alexandre de Morais. Diversos ministros consideravam, também, que o recebimento da denúncia seria crucial para o não cabimento do acordo de não persecução penal ao processos em curso.
A 2ª Turma havia firmado o entendimento pela aplicabilidade para todos os processos desde que não houvesse o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Nesse sentido, é ilustre o julgado HC 185.913\DF, cuja relatoria coube ao Ministro Gilmar Mendes.
O entendimento divergente entre as Turmas gerou a necessidade de uniformização jurisprudencial.
O debate sobre o tema trouxe uma decisão mista entre as posições das turmas e resolveu-se a questão de forma estrutural, para que não houvesse a possibilidade de prescrição das ações penais em curso ou a prática de atos processuais desnecessários entre os órgãos julgadores de todas as instâncias. Veja-se que houve a aplicação de um processo estruturante para dar mais racionalidade para o sistema de justiça criminal.
Julgamento do HC 185.913/DF
O consenso ocorreu no julgamento do HC 185.913/DF. O Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese:
Compete ao membro do Ministério Público oficiante, motivadamente o no exercício do seu poder dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno.
É cabível a celebração do ANPP em casos de processo em andamento quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado.
Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais em tese seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ao não do acordo.
Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura pelo órgão ministerial no curso da ação penal, se for o caso.
A propositura para os casos em andamento deve ocorrer pelo órgão ministerial do Tribunal ou juízo onde tramita a ação. Recomenda-se a prudência para a defesa requerer o acordo de não persecução penal nos casos em andamento antes da entrada em vigor do Pacote Anticrime.
O requerimento defensivo deve ser realizado na primeira oportunidade que couber a defesa falar nos autos.
Lembre-se que a defesa pode utilizar os recursos previstos para fazer o pedido, haja vista a natureza de ordem pública dos direitos e garantias fundamentais envolvidos.
Bastante atenção quanto à possibilidade de utilização dos recursos de embargos de declaração com pedido de concessão de efeitos infringentes e do agravo regimental para o questionamento sobre a matéria.
Como a teoria dos jogos pode auxiliar os penalistas na tomada de decisões sobre os acordos de não persecução penal?
A teoria dos jogos aplicada no processo penal possui como um dos seus principais expoente o juiz de direito Alexandre Morais da Rosa. Segundo o autor, o processo decisório passa inerentemente pelos atores processuais e toda a gama de possíveis interações dos atores entre si e dos atores com o meio no qual eles estão inseridos.
No caso específico tratado nesse artigo, o posicionamento anterior do Ministro relator ou da Turma julgadora sobre o acordo de não persecução penal pode alterar diretamente o conteúdo da decisão de homologação ou não de um acordo.
Em decorrência disso, será fundamental para a defesa conhecer previamente as partes, seus posicionamentos e como foram as decisões anteriores em casos semelhantes.
Outro ponto fundamental será entender a lógica do sistema negocial e como recorrer em caso de um acordo desleal ou arbitrário, sob pena de violação do pré-requisito básico do sistema negocial, a livre manifestação de vontade.
Para os casos em que já houver uma condenação, os parâmetros fixados na denúncia e na própria sentença penal condenatória devem ser analisados para que o acordo de não persecução seja realmente benéfico para os acusados.
Repassadas todas essas particularidades, conclui-se que a grande maioria da advocacia criminal não está preparada para uma atuação mais incisiva, lógica e técnica no campo do direito penal negocial.
A celebração do acordo de não persecução perante o Supremo Tribunal Federal deve ser requerida pela defesa conforme a decisão do HC 185.913/DF.
A defesa precisa requerer a remessa dos autos para o Procurador Geral da República ou para representante ministerial competente para a oferta da proposta.
Relembra-se, também, que estas mesmas orientações podem ser aplicadas para as negociações perante os demais Tribunais pátrios que deverão seguir as orientações da Suprema Corte brasileira.
Ressalta-se que grande parte da advocacia criminal não conhece as premissas e como tratar o modelo de direito penal negocial.
Dessarte, recomenda-se mais estudos sobre a matéria para negociar acordos mais eficientes e com menor desgaste possível para os clientes.