Para além de representarem inequívoca revisitação de sua jurisprudência, as decisões do STJ nos temas do reconhecimento de pessoas, ingresso policial em domicílio e, mais recentemente, valor probatório da confissão extrajudicial têm representado gradativo abandono da concepção persuasiva da prova, que tem como principal marca o axioma da livre valoração da prova. Produtos dessa evolução são as teses fixadas pela Terceira Seção do STJ no julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 2.123.334/MG, de relatoria do Min. Ribeiro Dantas, ocasião em que o STJ considerou que a confissão extrajudicial é meio de obtenção de provas, cuja admissibilidade depende da observância à formalidade do ato e da idoneidade do local no qual a confissão foi prestada.
No artigo de hoje, meu colega Alan Cabral Jr. me ajuda a analisar o acordão do STJ e discorrer sobre os principais aspectos da decisão.
Caso: condenação de jovem negro por furto de uma bicicleta
O jovem Antony José de Souza Rosa foi preso por suspeita de ter furtado uma bicicleta que estava estacionada do lado de fora de um supermercado da cidade de Belo Horizonte. Ao sair do local e perceber a falta da bicicleta, a vítima identificou o suspeito após ver as imagens das câmeras de segurança do estabelecimento. A acusação contra o suspeito foi baseada no reconhecimento fotográfico e na confissão extrajudicial que Antony teria prestado aos policiais logo após o fato.
O caso decorre de julgamento ocorrido em 7 de outubro de 2020, ocasião em que o réu teve seu primeiro contato com o magistrado responsável. Na oportunidade, a Defesa sustentou que a confissão informal havia sido obtida pelos policiais mediante prática de tortura, além de questionar a validade probatória do reconhecimento fotográfico. Não obstante tais alegações, o juízo de primeira instância condenou o réu à pena de 2 anos e 6 meses de reclusão, em regime semiaberto, cumulada com o pagamento de 40 dias-multa.
Contra a decisão, foi interposta apelação. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao apreciar o recurso, deu-lhe provimento parcial, mas apenas pra reduzir a reprimenda para 1 ano, 4 meses e 10 dias de reclusão, além de fixar o pagamento de 12 dias-multa. Do referido acórdão, foi interposto Recurso Especial, no qual se alegou, em síntese, violação aos artigos 155 e 226 ambos do CPP.
A Defesa argumentou, no REsp, que o reconhecimento fotográfico realizado pela vítima durante o inquérito policial não teria observado as formalidades exigidas pela legislação processual penal, consistindo apenas na apresentação de uma única fotografia. Diante disso, sustentou que, sem o reconhecimento, inexistiria prova judicializada suficiente para fundamentar a condenação imposta.
A superação do dogma da confissão como rainha das provas: voto do Ministro Ribeiro Dantas
No voto proferido, o Ministro Relator teceu considerações a respeito de casos emblemáticos que ilustram erros judiciários relacionados a confissões obtidas mediante tortura. Em destaque, mencionou o célebre caso dos Irmãos Naves, reconhecido como um dos maiores equívocos judiciais da história brasileira, envolvendo confissões obtidas sob tortura entre outros crimes praticados por agentes estatais. Além disso, citou o caso de Adeildo e Luane, casal injustamente preso e acusado de homicídio do próprio filho, com base em uma confissão extraída mediante tortura. Após dois anos de prisão, o laudo necroscópico comprovou que a criança havia falecido em decorrência de meningite, evidenciando a falha investigativa, bem como a possibilidade de a confissão ter sido extraída mediante tortura.
Ambos os casos, segundo o Ministro, possuem em comum a “obsessão policial com o binômio flagrante-confissão”, frequentemente presente em condenações baseadas exclusivamente em declarações obtidas sem o respaldo de investigações adicionais. Essa prática, conforme destacado, demonstra um retrocesso ao desconsiderar avanços investigativos, acadêmicos e judiciários das últimas três décadas, tanto em âmbito nacional quanto internacional. Esses avanços revelam os graves problemas associados à técnica investigativa voltada exclusivamente à obtenção de confissões.
No caso concreto mencionado no voto do Ministro, tal retrocesso se fez presente, pois houve condenação de um réu pelo crime de furto, sem investigação adequada, fundamentando-se em um flagrante comprometido e em uma confissão informal, cujas alegações de obtenção mediante tortura foram desconsideradas pelas instâncias ordinárias, pela polícia e pelo Ministério Público.
Com base nisso, o voto propôs uma releitura dos arts. 155, 156, 157, 158, 197 a 200 e 400, § 1º, ambos do CPP, com o objetivo de promover mudanças na compreensão do instituto da confissão pela jurisprudência. Essas mudanças estão organizadas em duas vertentes principais:
- Admissibilidade da Prova: Exigir que o interrogatório seja formalizado em um ambiente estatal oficial, como forma de prevenir e desencorajar, de maneira objetiva e antecipada, a prática de tortura.
- Valoração da Prova: Reconhecer a confissão como prova de natureza dúplice: (i) servir como meio de obtenção de outras fontes probatórias; ou (ii) corroborar com as provas já existentes. No entanto, a confissão, isoladamente, não deve ser considerada suficiente para comprovar qualquer elemento do crime.
A proposta enfatiza a importância de alinhar a prática judiciária a um modelo investigativo mais robusto e respeitoso às garantias constitucionais, reforçando a necessidade de critérios rigorosos para a produção e valoração de provas no processo penal.
Limites à utilização da prova decorrente de confissão
No voto, o Ministro propôs uma nova interpretação das normas atinentes à confissão, considerando duas etapas distintas de sua conformação jurídica: a (i) admissibilidade e a (ii) valoração.
No que se refere ao juízo de admissibilidade, o magistrado deve analisar a capacidade que determinada prova possui para permitir a extração de conclusões minimamente seguras sobre os fatos em discussão – ou seja, sua relevância epistêmica. Para ser admissível, a prova precisa apresentar um grau mínimo de confiabilidade, de modo que, a partir de sua análise, seja possível alcançar conclusões sólidas acerca de um fato ocorrido no mundo real. Caso a prova, devido a deficiências em seu conteúdo ou na forma como foi obtida, seja incapaz de contribuir para a corroboração de uma hipótese, será considerada inadmissível por irrelevância, nos termos do artigo 400, § 1º, do Código de Processo Penal, ainda que não seja nula ou ilícita. Quando se tratar de provas nulas ou ilícitas, a consequência será sua inadmissibilidade. No voto, o Ministro ressalta que essa análise visa determinar a “aptidão epistêmica” da prova.
Quanto à valoração probatória, o Ministro destacou que essa etapa constitui o clímax do processo judicial, momento em que o julgador, com base em critérios racionais, decidirá objetivamente quais fatos podem ser considerados provados.
Admissibilidade e valoração da confissão extrajudicial e extrajudicial: teses fixadas pelo STJ
O acordão apresenta considerações e dados sobre a atuação policial no Brasil, citando a monografia de Vanessa Gonçalves e estudo realizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ), que identificou 1.250 relatos de tortura feitos por réus assistidos pela entidade entre junho de 2019 e agosto de 2020. Em 66% desses casos, a alegação de tortura não foi mencionada nos termos das audiências de custódia, tampouco o Judiciário determinou qualquer apuração adicional dos fatos; o mesmo se verificou em 86% das sentenças. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Anistia Internacional, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP) e de autores como Marcelo Semer corroboram que a tortura para obtenção de confissões ainda é prática recorrente na práxis policial.
Diante desse cenário, o voto questiona: qual é a aptidão epistêmica de uma confissão extrajudicial no processo penal? Ou, em outras palavras, em que medida uma confissão obtida unilateralmente pelas autoridades investigativas pode ser considerada apta a gerar conclusões seguras sobre os fatos investigados? E em quais circunstâncias essa aptidão estará presente?
Nesse contexto, a confiabilidade da confissão extrajudicial é colocada em dúvida. Para que possa ser admitida no processo penal, torna-se indispensável a adoção de cautelas institucionais capazes de neutralizar os riscos inerentes, garantindo maior confiabilidade quanto ao conteúdo da confissão e ao modo de sua obtenção.
São duas, portanto, as exigências fundamentais para a admissibilidade da confissão, conforme as teses fixadas pelo STJ:
- Formalidade: o ato deve ser realizado com a observância de procedimentos formais, respeitando os direitos do investigado.
- Local apropriado: a confissão deve ser colhida em um estabelecimento público e oficial, integrante da estrutura estatal.
Atendidos esses requisitos, a confissão poderá ser admitida como elemento informativo no inquérito policial. Caso contrário, a confissão será considerada inadmissível. Isso inclui o cumprimento do disposto no art. 199 do CPP, que exige que a colheita da confissão seja tratada como um ato formal, realizado na delegacia de polícia ou em outro estabelecimento estatal, com a devida informação ao investigado sobre seus direitos constitucionais e a lavratura de um termo específico.
O resumo da tese proposta (fl. 29) é: “a confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente, de maneira documentada e dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Essas garantias são irrenunciáveis, e sua ausência torna a prova inadmissível. A inadmissibilidade subsistirá mesmo que a acusação tente introduzir a confissão por outros meios probatórios, como o depoimento do policial que a colheu”.
Quanto à valoração probatória, o voto esclarece que a admissibilidade da confissão não implica, necessariamente, a condenação do réu. É imprescindível que o magistrado valorize todas as provas disponíveis, verificando se a hipótese acusatória está comprovada em conformidade com os standards probatórios exigidos pelo processo penal.
O voto também aborda o problema das falsas confissões, destacando dados do Innocence Project. De 375 réus inocentados por exames de DNA promovidos pela ONG entre 1989 e 2022, 29% haviam confessado crimes que não cometeram. Entre esses, 49% eram jovens com menos de 21 anos e 9% apresentavam problemas de saúde mental ignorados pelo sistema de Justiça. Em casos de homicídio, onde há maior pressão policial pela elucidação, o índice de falsas confissões chega a 61%.
Por isso, no campo da valoração probatória, o voto defende que a confissão extrajudicial não deve ser utilizada como fundamento para uma sentença condenatória, sendo necessária a confissão colhida em juízo, durante o interrogatório do réu. A confissão extrajudicial, quando admissível, deve servir apenas como meio de obtenção de provas, auxiliando as autoridades na identificação de outras fontes probatórias. A condenação, nos termos do art. 197 do CPP, só será possível quando a confissão judicial estiver corroborada por outros elementos de prova.
Conclusão
Ao ressignificar o papel da confissão na persecução penal no Brasil, o acordão, com os acréscimos propostos pelo Ministro Rogério Schietti Cruz, é paradigmático na medida em que retoma os valores da verdade e da defesa de direitos individuais como elementos fundantes da jurisdição, tal como proposto na teoria do garantismo penal.
Ainda, a decisão contribui para conformar a regra da livre valoração da prova à ambiência do estado democrático de direito, determinando, de forma clara e exemplificativa, suas limitações, além de abrir espaço para outros avanços, como, por exemplo, a superação da Súmula 7 a partir da ressignificação do recurso especial, agora pensado como instrumento de controle da correta valoração das inferências sobre a prova do fato penal, caminho metodológico utilizado pelo Ministro Ribeiro Dantas ao realizar o “controle da fundamentação da sentença condenatória e do acordão” que concluíram pela suficiência e adequação da confissão para a condenação do acusado.