Izabella Machado e Pablo Pessoni*
Diariamente, nos deparamos com injustas recusas de tratamentos a beneficiários de planos de saúde que são autistas. É importante ressaltar, desde o início, que tais recusas, além de ilegais, são discriminatórias. Diante disso, é urgente a necessidade de mudança, pois os mencionados beneficiários não exigem nada além da prestação de um direito constitucionalmente garantido, mediante a devida contraprestação financeira.
Dentre os variados motivos de recusa, destacam-se: o suposto caráter experimental do tratamento; a interpretação equivocada sobre o rol da ANS ser taxativo; a limitação do número e do tempo de sessões de terapia; a negativa de terapias especializadas, como psicomotricidade, musicoterapia e terapia ocupacional; a ausência de profissionais credenciados e qualificados; a extensão desproporcional do período de carência para alguns tratamentos; e a suspensão ou interrupção unilateral do contrato.
De acordo com o canal CNN, de janeiro a agosto de 2024, a ANS recebeu mais de 10 mil reclamações relacionadas a tratamentos de pacientes com TEA. O número de ações judiciais contra operadoras de planos de saúde também não para de crescer. Em 2024, foram registrados quase 300 mil novos casos, conforme informa o jornal O Globo.
Diante desses dados, questiona-se: são os consumidores que judicializam o direito à saúde de forma desmedida e irresponsável ou são as operadoras que violam direitos de maneira reiterada e desumana?
Pois bem. O relatório do médico especializado é soberano, pois ele é o profissional capacitado para determinar a quantidade e os tipos de terapias necessárias. Essa situação foi reforçada pela chamada “Lei do Rol da ANS”, que estabelece que, mesmo que o procedimento não esteja previsto no rol da ANS, ele deve ser coberto pelo plano quando houver pedido médico e comprovação robusta de eficácia científica.
A Resolução 469/2021 da ANS eliminou a limitação do número de terapias, abrangendo, entre outras, psicoterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, necessárias ao tratamento do TEA. Também prevalece o entendimento de que contratos de planos de saúde podem até limitar a cobertura de algumas doenças, mas nunca o tratamento a ser dispensado ao paciente, pois essa é uma função exclusiva do médico que o acompanha.
Uma recente decisão da 11ª Vara Cível de Goiânia, a pedido do Ministério Público de Goiás, determinou que uma operadora de plano de saúde restabelecesse imediatamente as terapias prescritas a crianças autistas. A decisão foi motivada pela redução unilateral das sessões, baseada em pareceres de uma junta médica formada pela própria operadora, cuja imparcialidade foi questionada. Foi apurado que essas juntas não realizavam avaliações presenciais, emitia pareceres padronizados e desconsiderava o histórico clínico de cada paciente, comprometendo o tratamento.
Portanto, um plano de saúde não pode limitar as terapias a 4 horas semanais quando o indicado são 35, por exemplo.
Na prática, observa-se um verdadeiro descompasso entre o que é divulgado nas publicidades e o que efetivamente é entregue às pessoas que dependem da cobertura recorrente para garantir o acesso efetivo à saúde.
As reclamações perante a ANS podem solucionar muitos problemas entre usuários e operadoras. No entanto, quando se trata do dever de garantir terapias ilimitadas aos autistas, essa resposta tem sido insatisfatória. Assim, a judicialização acaba se tornando o caminho mais seguro para obrigar o plano a fornecer o tratamento nos moldes indicados pelo profissional especialista.
Vale ressaltar que, apesar de o Código de Defesa do Consumidor e suas regras protetivas não se aplicarem aos planos de saúde de autogestão, como a CASSI e a Caixa Saúde, esses contratos estão submetidos à Lei dos Planos de Saúde caso tenham sido firmados após janeiro de 1999 ou adaptados à referida legislação.
É cabível o pedido de reembolso das despesas adiantadas pelo usuário quando o plano de saúde não disponibiliza profissionais credenciados e/ou qualificados na área de abrangência do contrato. Nesse caso, o usuário deve requerer a restituição das quantias pagas, respeitados os limites da tabela do plano, pela via administrativa ou judicial, caso o primeiro caminho reste infrutífero.
Além disso, sempre que possível, é essencial manter os profissionais que já acompanham determinada criança, pois a adaptação terapêutica pode ser uma barreira ao progresso do tratamento. Assim, o descredenciamento abrupto de clínicas e/ou profissionais, sem a disponibilização de outra equipe qualificada, também justifica a exigência de reembolso das despesas adiantadas.
Ademais, é abusiva a conduta das operadoras que cancelam unilateralmente os planos de crianças e adolescentes autistas em acompanhamento terapêutico. Esse entendimento, inclusive, é compartilhado pelos tribunais superiores.
Não existem soluções simples para problemas complexos, mas é necessário um alinhamento entre a regulamentação da ANS, a legislação que rege o tema e o serviço efetivamente entregue pelos planos de saúde.
Diante do exposto e sem pretensão de esgotar a presente discussão, é de suma importância um maior rigor na fiscalização e vigilância entre usuários e prestadores, de forma a estabelecer efetividade nessa relação contratual, pois a prestação do serviço de saúde não deve visar apenas o lucro, mas o resguardo a bens jurídicos tutelados, quais sejam: vida e saúde.
*Izabella Machado é advogada, inscrita na OAB/GO e OAB/RJ, membro da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/GO, especialista em direito do consumidor e direito da saúde, sócia do escritório Lacerda e Machado Advogados Associados.
*Pablo Pessoni é advogado, inscrito na OAB/GO, vice-presidente do interior da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/GO e especialista em direito do consumidor e direito da saúde.