Possibilidade de manutenção da frota (alienada) da empresa em recuperação judicial, mesmo após o stay period

Alexandre Aprigio do Prado*

Tema bastante debatido, a possibilidade de uma empresa em recuperação judicial continuar, por exemplo, na posse da sua frota – alienada fiduciariamente – após o transcurso do “stay period” (blindagem). Tal temática é relevante em especial para empresas de transporte, que em regra possuem grande parte da sua frota na referida condição e em alienação fiduciária.

Conforme fundamentação colhida pela doutrina, bem como o Egrégio TJGO e STJ, os bens essenciais ao soerguimento da empresa não podem ser retirados da posse da mesma, sob pena de ofensa ao princípio da preservação da empresa, mesmo após o fim do stay period.

Alguns Tribunais Estaduais, em especial o TJSP, entende que transcorrido o prazo do stay period, os bens alienados poderiam ser objeto de Busca e Apreensão pelos credores fiduciários. Tais decisões se fundamentam na intepretação literal do §3º do art. 49 da LRJ, que diz:

“§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”

Contudo a aplicação literal da lei, alhures de seus princípios balizadores nem sempre se mostra a melhor interpretação.

Vejamos entendimentos exarados de forma reiterada pelo STJ, no sentido de manutenção dos bens essências ao soerguimento da empresa, mesmo após o termino do stay period:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE CONHECEU DO AGRAVO PARA NEGAR PROVIMENTO AO RECLAMO. IRRESIGNAÇÃO DA PARTE AGRAVANTE. 1. Compete ao juízo da recuperação judicial a prática de atos de execução (constritivos/expropriatórios) deduzidos em face do patrimônio da empresa recuperanda, mesmo após o transcurso do prazo de 180 dias de suspensão, previsto no art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/05.2. Segundo orientação jurisprudencial firmada por esta Corte Superior de Justiça, os credores cujos créditos não se sujeitam ao plano de recuperação, mesmo aqueles garantidos por alienação iduciária, não podem expropriar bens essenciais à atividade empresarial, sob pena de subvertendo-se o sistema, conferir maior primazia à garantia real em detrimento do princípio da preservação da empresa. 2.1. Em razão de os imóveis dados em garantia fiduciária constituírem o local onde são exercidas atividades de administração, gerenciamento, plantio e produção de maçãs (objeto social das recuperandas), não se revela possível a consolidação da propriedade fiduciária em favor da parte credora. 3. Agravo interno desprovido. AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1677661 – SC (2020/0058035-0) RELATOR : MINISTRO MARCO BUZZI. (destacamos).

E no mesmo sentido os julgados do STJ, no AgInt no AREsp 1087323/SP e AgInt no AREsp 1087323/SP, STJ, AgInt no AREsp 1677661/SC e outros.

Portanto, se o STJ entende que, mesmo em relação aos credores totalmente extraconcursais/não sujeitos aos efeitos da recuperação, não se pode admitir que a exigência do crédito represente barreira intransponível ao sucesso da recuperação judicial.

E neste sentido o TJGO vem se posicionando, alinhado assim com a orientação do STJ, conforme julgado a ser destacado:

EMENTA: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 1.RECURSO SECUNDUM EVENTUM LITIS. O Agravo de Instrumento é recurso secundum eventum litis e deve permanecer adstrito à pertinência da decisão agravada, seu acerto ou desacerto, sendo defeso a análise de matéria nela não abarcada, ainda que de ordem pública, sob pena de supressão de instância. 2.EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. BEM ESSENCIAL À ATIVIDADE EMPRESARIAL. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. PERMANÊNCIA NA POSSE DAS EMPRESAS RECUPERANDAS. POSSIBILIDADE. Consoante norteia o Superior Tribunal de Justiça flexibiliza-se a regra prevista no §3º, do artigo 49, da Lei nº 11.101/2005, aplicando a ressalva contida na parte final do dispositivo legal, de modo a permitir que bens, objeto de contratos de alienação fiduciária, porém, essenciais ao regular desenvolvimento das atividades empresariais da recuperanda, permaneçam em sua posse. 3.ESSENCIALIDADE DOS BENS DEMONSTRADA. No que diz respeito à essencialidade dos bens, referente aos veículos alienados fiduciariamente às agravadas e que compõem a sua frota, notório que, pelo fato de eles atuaram no ramo de transporte de cargas, os mesmos são necessários a sua atividade, de forma que deverão permanecer na posse deles, na forma estabelecida pelo Julgador de Origem, conforme assim permite o art. 6º, §4º, da Lei n.º 11.101/2005. 4.AUSENTES FATOS NOVOS. Não subsistem as teses invocadas no recurso de Agravo Interno quando inexistente argumento novo capaz de modificar a conclusão proposta no ato judicial atacado. AGRAVO INTERNO CONHECIDO E DESPROVIDO.(TJGO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Agravos -> Agravo de Instrumento 5317944-59.2022.8.09.0000, Rel. Des(a). DESEMBARGADORA SANDRA REGINA TEODORO REIS, 6ª Câmara Cível, julgado em 07/11/2022, DJe  de 07/11/2022). (destacamos)

E tais entendimentos possuem respaldo na doutrina, conforme a lição de Eduardo Secchi Munhoz[1]:

“Se o objetivo da lei brasileira quanto ao stay period era evitar a concessão de ampla margem de decisão ao Poder Judiciário, a melhor orientação não parece ser a de adotar uma regra excessivamente rígida e rigorosa. A experiência demonstra que diante de regras excessivamente rígidas, que podem levar a soluções incompatíveis com a realidade subjacente, a jurisprudência tende a buscar construções que a flexibilizem, algo que justamente o legislador pretendia evitar ao adotar a regra dotada de maior rigidez. Melhor seria que a lei tivesse definido com clareza os critérios que autorizam a prorrogação do prazo de 180 dias e, ainda, estabelecido um limite máximo para essa prorrogação”.

Sobre a essencialidade dos bens móveis (caminhões, reboques, máquinas pesas e etc) mesmo sendo objeto de financiamento, vejamos a lição da doutrina de Manoel Justino Bezerra Filho[2]:

“qualquer bem objeto de alienação fiduciária, arrendamento mercantil ou reserva de domínio deve ser entendido como essencial à atividade empresarial, até porque adquirido pela sociedade empresária somente pode ser destinado à atividade exercida pela empresa. Este caráter de essencialidade, em caso de empresa em recuperação, deve permitir um entendimento mais abrangente do que aquele normalmente aplicado”.

No mesmo sentido Geraldo Fonseca[3]:

(…) É o que ocorre com os créditos de alienação fiduciária, arrendamento mercantil, promessa de venda de imóveis e compra e venda com reserva de domínio (art. 49 §3º). Para tais credores, prevalecem os direitos e propriedade e as condições contratuais, mas os bens de capital essenciais à atividade empresarial não podem ser retirados do estabelecimento do devedor. Veja-se que, para tais credores, os efeitos da recuperação são sentidos em parte: o crédito em si não é atingido, mas a exigibilidade do direito de propriedade é limitada pela vedação de retirada de estabelecimento dos bens essenciais”.

Portanto, o STJ entende que mesmo em relação aos credores totalmente extraconcursais/não sujeitos aos efeitos da recuperação não se pode admitir que a exigência do crédito represente barreira intransponível ao sucesso da recuperação judicial.

Tudo isso fundamenta a conclusão de que a melhor interpretação que se deve dar ao art. 49, §3º. da lei 11.101/05 é aquela que equilibra o exercício do direito do credor fiduciário com a preservação da empresa e a tutela de sua função social. Qualquer ativo que seja essencial à restruturação da empresa viável deverá ser preservado durante o período em de soerguimento da empresa.

Deve-se privilegiar, por conseguinte, conclusão que favoreça a preservação da fonte produtora, resguardando o desenvolvimento nacional e regional, a manutenção dos empregos dos trabalhadores e a satisfação dos créditos pendentes.

*Alexandre Aprigio do Prado é advogado. Sócio da Aprigio & Prado advocacia. Especialista em Direito cível e empresarial. E-mail alexandreaprigiodoprado@gmail.com.

Referências

[1] Comentários a Lei de Recuperação de empresas e falência, São Paulo Ed. Revista dos Tribunais, 2017.

[2](in Lei de Recuperação de Empresas e Falência, São Paulo: RT, 2011, p. 139).

[3] FONSECA, Geraldo. Manual da recuperação judicial – ed.1 – Rio de Janeiro, 2021