Onde houver o ódio…

*Eduardo Perez Oliveira

Publiquei esse texto na véspera da eleição de 2018. Por coincidência alguém me lembrou dele, e, como me pediram uma fala para hoje (31/10), penso que ainda é atual.

Segue:

Nessa noite que antecede o dia de votação do que foi a campanha eleitoral mais tensa de que me recordo, gostaria de dividir com os amigos quatro histórias breves, com referências para quem quiser saber mais, e, ao final, uma ponderação.

Peço que emprestem seus olhos e sua atenção por poucos momentos enquanto recordamos histórias da II Guerra Mundial, já que o tema do nazismo foi tão ampla, e lamentavelmente, explorado.

A primeira história muitos conhecem por conta do filme de Spielberg, “A Lista de Schindler”. Oskar Schindler era um industrial alemão membro do partido nazista que enriqueceu nesse período.

De início, contratava judeus para sua fábrica porque eram a mão-de-obra barata, preocupado em fazer dinheiro. Porém, tendo tomado consciência daquilo de que participava, passou a protegê-los da forma que podia, tendo salvado mais de mil da morte.

Isso custou-lhe toda a fortuna que tinha. Após a guerra, sem sucesso em nenhum de seus negócios, recebeu ajuda daqueles que salvou. Tanto ele quanto sua ex-esposa, Emilie Schindler, foram honrados pelo povo judeu como Justos Entre as Nações (https://bit.ly/1Tw7ed9).

Chiune Sugihara foi um oficial do império japonês servindo na Lituânia durante a Segunda Grande Guerra. Consta que, no ano de 1940, teria ajudado mais de seis mil judeus a escaparem da Europa entregando-lhes vistos de trânsito, com risco da própria vida e de sua família.

Em seu último dia no local, antes de ser obrigado a retornar ao Japão, Chiune ainda jogava vistos carimbados e assinados pela janela do trem.

Dispensado dos seus serviços, permaneceu silente sobre seu ato heróico e somente foi descoberto graças a uma das milhares de pessoas que salvou, sendo considerado, também, Justo Entre as Nações.

Ele, assim como sua esposa, Yukiko Sugihara (https://bit.ly/2R556L3), foram excepcionais. Chiune, criado no estrito código samurai por sua família e, posteriormente, convertido ao cristianismo, seguiu à risca o ditado de que “nem mesmo um caçador pode matar um pássaro que voa na direção dele em busca de refúgio “, encontrando a coragem de estender a mão ao seu semelhante (https://bit.ly/2Q0GYs2).

De origem polonesa e que teve por pai um médico socialista e humanitário, a terceira história é a de Irena Sendler, que atuou no gueto de Varsóvia durante a invasão nazista de 1940. Tendo obtido identificações do Gabinete Sanitário, levava para dentro do local alimentos, roupas e remédios.

Quando, em 1942, os nazistas passaram a deportar os judeus em massa, Sendler e sua amiga, Irena Schultz, conseguiram retirar 2500 crianças do gueto de Varsóvia. Dentre as várias pessoas que auxiliaram Irena estava Jan Dobraczynski, membro de um partido cristão de extrema direita e de teor anti-semita, e mesmo assim responsável por obter documentos que atestavam que as crianças eram cristãs.

Em 1943, Irena foi presa e torturada. Mesmo tendo as duas pernas quebradas, não entregou o nome de seus companheiros ou das crianças. Condenada à morte, foi salva no momento de sua execução graças a um agente nazista subornado.

Sandler, Schultz e Dobraczynski também foram considerados Justos Entre as Nações (https://bit.ly/2vQGfzD).

A quarta, e última história, é a da família muçulmana Hardaga: Mustafa Hardaga, sua esposa Zejneba, seu irmão Izet e a esposa dele, Bachriya. Esta família recebeu a família judia dos Kavilio, escondendo-os quando a casa deles foi destruída no bombardeio alemão de Sarajevo, em abril de 1941.

Os Hardaga eram muçulmanos praticantes, e, ainda assim receberam os Kavilio como membros da família, a ponto de não se exigir das mulheres o uso do véu, como era normal diante de estranhos.

Por mais de uma vez os Hardaga protegeram os Kavilio, que, em 1984, pediram, e obtiveram, o reconhecimento dos seus protetores, assim como do pai de Zejneba, Ahmed Sadik, que também abrigou um judeu, como Justos Entre as Nações.

Quando, em 1994, cinquenta anos mais tarde, Sarajevo esteve sob ataque Sérvio e a família de Zejneba estava em perigo, o Yad Vashem apelou ao presidente da Bósnia para que permitisse que Zejneba, sua filha, o marido dela e a filha do casal pudessem ser recebidos em Israel, retribuindo com humanidade o gesto corajoso dos Hardaga (https://bit.ly/2CKw1qJ).

Há uma miríade de histórias semelhantes em que pessoas chamadas de comuns praticaram feitos extraordinários e para além dos rótulos de religião, credo, raça e ideologia que lhes impingiram.

A complexidade de uma vida vai além de uma escolha política, do gênero, da pele ou de qualquer atributo.

O perigo reside em transformar o outro em objeto de seus desejos, ou no bode expiatório de suas frustrações. Os vícios são a maior arma de qualquer tirano: ao apontar alguém como inimigo, ao dizer que determinada categoria tem menos direitos ou é menos humana, ele cria degraus de dignidade onde nunca deveriam existir.

Aquele seduzido pela ideia não mais vê o outro como uma criatura que, como ele, sonha, sofre, ri, chora, mas um objeto conveniente ou inconveniente. Assim foram vistos desde tempos imemoriais estrangeiros, mulheres, ciganos, deficientes, escravos, ou só quem é, ou pensa, diferente.

O outro é o outro, não é um objeto de luxúria, diversão, sadismo ou ódio. Nenhuma vida deveria ser meio para um fim qualquer. Apenas o totalitarismo pede que você se ofereça em holocausto na pira espúria dos ideais, enquanto os tiranos se regozijam no luxo.

É com a promessa sobre os vícios vestidos de virtude que os déspotas entregaram aos seus súditos a justificativa para homicídios, escravidão, roubos e estupros.

Ah, sim, com certeza o nazismo era, e é, uma ideologia maligna, e seus apoiadores comungam desse mal, assim como o fascismo, o comunismo e tantas outras ideias mirabolantes e cheias de boas intenções que pavimentam a estrada para o inferno.

Mas isso não permite transformar o outro, aquele que não sou eu, em um monstro. Esse é o caminho mais fácil de trilhar, mas cujo fim termina num abismo.

Se em meio ao lodo pode nascer uma flor de lótus, e mesmo o asfalto e o cimento em suas rachaduras deixam brotar vida, é possível manter a esperança de que, até o limite do diálogo e da compreensão, aquele que pensa diferente comungue de virtudes comuns.

Eu não vou odiar ninguém por sua escolha política, ou pela falta de escolha. Ou melhor, eu não vou odiar ninguém. Como disse o reverendo Martin Luther King, “eu decidi ficar com o amor. O ódio é um fardo muito grande para suportar”.

Longe de mim a ilusão de que, independentemente do resultado das eleições e de nos mantermos adstritos aos nossos valores, passaremos a nos respeitar e nos tratar com educação. Que não haverá pirraça, nem rompantes de violência, seja ela organizada ou desorganizada. Si vis pacem, para bellum.

Sei que, independentemente do resultado, virá uma descomunal onda de ódio, de mentiras e de subterfúgios. Sei que existirão trevas, gemidos e ranger de dentes. Filhos se voltando contra pais, país contra filhos, e toda sorte de subversão. Tudo porque, de algum modo, ao longo da história se repete o adágio voltado a enganar pessoas já dispostas a serem enganadas: “sim, tudo bem odiar se você estiver do lado certo”.

Minha esperança é de que esse texto, como uma garrafa arremessada ao mar, encontre pelo menos uma pessoa que desista de odiar. E essa pessoa encontre outra. E assim por diante. Impossível de saber, mas é essa esperança o combustível da minha pequena chama contra a escuridão, o sussurro que clama no deserto.

Muito melhor se expressou sobre isso o anônimo que, no começo do século passado, escreveu a “Oração Bonita para fazer durante a Missa”, também conhecida como “Oração da Paz”, atribuída, muito justa, ainda que equivocadamente, a São Francisco de Assis:

“Senhor! Fazei de mim um instrumento da vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna”.

*Eduardo Perez Oliveira é juiz de Direito