Inteligência Artificial e Processo Civil: uma revolução silenciosa

Ivon Garcez*

O crescimento e impacto das IA’s na vida em sociedade é aquilo que se pode denominar de “revolução silenciosa”. Na medida em que a tecnologia avança, um temor e maravilhamento crescem nos olhos perplexos de qualquer um que acompanha uma nova notícia sobre outra funcionalidade trazida por esses programas, e fartas são as previsões de que muitas atividades humanas serão substituídas pela eficiência das máquinas.

Poucos no Brasil, porém, têm se voltado para discutir e noticiar como tais tecnologias já estão afetando, hoje, de forma prática, a Justiça e as diferentes instituições judiciárias ao redor do mundo. Não amanhã e nem ontem, mas dia após dia, presentemente: já é uma realidade.

O que é uma “IA”?

A inteligência artificial é um campo de estudo multidisciplinar, que vem se desenvolvendo através de um esforço “de formiguinha” de diversos cientistas e engenheiros, há mais de 65 anos(1).

A IA atua como um mestre de quebra-cabeças digital, aprendendo padrões por meio de dados. Se déssemos muitas fotos de gatinhos para uma IA, por exemplo, ela aprenderia a reconhecer padrões através delas, como o que possuem em comum e em que ponto se distanciam. Chegará um momento em que ela passará a admitir características e elementos comuns a todas elas (como “elementos que ligam todos os gatos”) e irá distinguir os animais de outras coisas.

Avanços Globais das IA’s no Processo Civil

No âmbito do processo civil, decisões judiciais confeccionadas por inteligência artificial – com base num veredito oferecido por um magistrado humano – não são mais o sonho de uma noite de verão, mas um experimento tido como bem- sucedido pela Alemanha. Mais especificamente, pelo Tribunal Distrital de Frankfurt (Amtsgericht Frankfurt). É a “Frauke” (Frankfurt Judgement Configurator Eletronic), uma ferramenta de IA criada pela empresa norte-americana IBM para a elaboração de sentenças em ações judiciais cíveis de baixa complexidade, como o direito do passageiro (2).

Em dezembro de 2018, a Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça, CEPEJ, já havia redigido o primeiro texto estabelecendo princípios éticos relacionados ao uso de inteligência artificial nos sistemas judiciais dos Estados-membros da União Europeia (3). Já no Brasil, o uso das tecnologias só foi tratado oficialmente no âmbito do  Poder Judiciário em 2020 e por meio da resolução 332/20 do CNJ, que autoriza o uso e estabelece parâmetros.

Há uma série de casos judiciais polêmicos envolvendo o mau uso de IA em 2023. Um deles, que tomou proporções internacionais, foi a multa de US$ 5.000,00 aplicada ao escritório nova-iorquino Levidow, Levidow & Oberman, por incluírem seis citações de casos fictícios gerados pelo ChatGPT como argumento jurídico em sua petição ao Juízo Cível.

“Cometemos um erro de boa-fé ao não acreditar que uma ferramenta tecnológica pudesse estar inventando casos do zero (4)”, constou no comunicado oficial da empresa. Nas terras tupiniquins, o Conselho Nacional de Justiça atualmente investiga um caso similar, também ocorrido no ano de 2023, mas envolvendo a atuação de um juiz federal, que prolatou uma sentença com trechos integralmente fabricados pelo ChatGPT e em que constou como fundamento um precedente fictício, atribuído ao STJ, pelo chatbot. Esses são apenas dois exemplares de casos conhecidos – ou seja, os que deram errado.

No Brasil e em Goiás…

Metade dos tribunais do país atualmente têm um projeto de IA, em criação ou desenvolvimento (5). Cerca de metade deles já utilizam soluções do tipo para diversas finalidades há alguns anos, como filtragem e triagem de processos. O que está mudando, de fato, é o fim para o qual essas ferramentas estão sendo direcionadas ou desejadas.

As Cortes Superiores, por exemplo, demonstram especial interesse no desenvolvimento da IA. Inclusive, no mês de março de 2024, o Supremo Tribunal Federal concluiu um chamamento público para apresentação de protótipos de soluções em inteligência artificial.

Quando em novembro de 2023, data de abertura do edital de chamamento do STF, o então conselheiro do CNJ, Luiz Bandeira de Mello, externalizou uma visão, de forma oficial (6): “Ao oferecer informações preliminares, permitiremos ao juiz tomar decisões mais rápidas, o que resultará em ganho de eficácia e eficiência. Contudo, é importante frisar que a decisão sempre continuará a ser do magistrado, ninguém aqui quer um juiz robô”.

Já em 14 de maio de 2024, o atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, emitiu outra opinião, destacando aspectos bem diferentes(7). Ele afirmou: “Em breve, tenho certeza de que teremos a inteligência artificial escrevendo a primeira versão de sentenças”. Para o ministro, a inteligência artificial “[…] pode tomar melhores decisões em muitas matérias, porque é capaz de processar mais informações com maior velocidade”.

Em Goiás, a “Berna” já é utilizado na leitura de petições iniciais, desmembramento das peças e teses jurídicas e formação de grupos de demandas similares, com taxa de segurança de 90%, como informou o diretor de Estatística e Ciência de Dados do TJGO, Antônio Pires, em entrevista ao veículo de notícias do CNJ (8).

O juiz auxiliar da Presidência do TJGO, Reinaldo de Oliveira Dutra, que coordena a pasta de IA do TJ GO, também se manifestou na ocasião, afirmando que a Berna agiliza os atos judiciais “pois consegue produzir solução automatizada após a leitura da petição inicial, realizando a conclusão do processo para que um juiz já saiba do que se trata e decida de forma mais simplificada”. O Estado também será sede de uma conferência internacional sobre inteligência artificial nos próximos meses.

O AI Summit GO está previsto para o primeiro semestre de 20249, ainda sem data certa, mas contando com convites já confirmados de empresários e pesquisadores da Finlândia, Canadá e China, além de grandes empresas do ramo já presentes no Brasil, como a Nokia. A UNESCO também deverá marcar presença no evento.

Perspectivas Futuras e Desafios

Numa perspectiva processualista da história recente de tais soluções de inteligência artificial para o julgamento de processos judiciais, há até pouco tempo atrás havia uma resistência social muito maior à ideia de que um ato judicial poderia ser integralmente realizado por uma IA, em vários níveis da discussão, intra e internacionalmente. No presente momento, parece estar harmônico em várias dessas instâncias de pensamento que não se está mais discutindo a viabilidade ou não da confecção de sentenças por IA’s, e sim em que tipo de causas isso será possível num futuro próximo.

O maior desafio hoje a ser vencido para um avanço dessa proposição, no âmbito do processo civil, sem dúvidas reside no raciocínio das leis e regras balanceadas entre princípios e valores fundamentais, especialmente em quando elas devem ser quebradas ou relativizadas em prol deles. Fato agravado na tradição da Civil Law, que se baseia na individualização da solução mais justa, que deve ser identificada por meio do enfrentamento de cada caso concreto e à qual o Brasil se afilia. Diferente da tradição Common Law, seguida por países como os Estados Unidos e que dá mais ênfase na repetição do histórico de julgamentos anteriores sobre o mesmo assunto.

Mas, a futura aplicação das IA’s não é algo a ser subestimado. Há inúmeros governos e instituições públicas interessadas em tornar isso uma realidade, investindo milhões de dólares por dia. A evolução dos estudos em machine learning (aprendizado da máquina) e tecnologia da argumentação, além da disponibilidade cada vez maior de dados jurídicos na internet, também têm sido um ambiente extremamente fértil.

A industrialização do Poder Judiciário já é uma realidade inegável. E, neste caso, seria correto afirmar que uma demanda industrial necessita de uma resposta industrial? Bem, este é o debate ético que precisar ser tido hoje, de forma pública e com todas as cautelas de urgência – sob pena de os eventos continuarem atropelando os atores de forma irrefletida, até que se concretize uma realidade não antes pensada.

*Ivon Garcez é acadêmico de Direito e analista jurídico do escritório João Domingos Advogados Associados. Aberto para dúvidas, críticas ou sugestões através do perfil de Instagram @ivongarce

Referências

1 https://link.springer.com/article/10.1007/s44163-022-00022-8

2 https://www.ibm.com/blog/judicial-systems-are-turning-to-ai-to-help-manage-its-vast- quantities-of-data-and-expedite-case-resolution/

3 https://www.coe.int/en/web/cepej/cepej-european-ethical-charter-on-the-use-of-artificial- intelligence-ai-in-judicial-systems-and-their-environment

4 https://www.reuters.com/legal/new-york-lawyers-sanctioned-using-fake-chatgpt-cases-legal- brief-2023-06-22/

5 https://rededepesquisa.fgv.br/noticia/projeto-mapeia-sistemas-de-inteligencia-artificial- utilizados-pelo-judiciario-brasileiro

6 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=522767&ori=1

7 https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-05/barroso-inteligencia-artificial-podera- escrever-sentencas-em-breve

8 https://www.cnj.jus.br/ferramenta-de-ia-desenvolvida-pela-justica-goiana-reduz-o-tempo-de- tramitacao-processual/