Cícero Goulart e Byanca Barbosa*
Nos últimos anos, tem-se observado um aumento significativo no consumo de serviços oferecidos por casas de apostas. Esta ascensão não apenas desencadeia preocupações sobre os impactos sociais, econômicos e de saúde pública associados a essa prática, mas também revela lacunas significativas na regulamentação e responsabilidade das plataformas envolvidas.
As apostas esportivas, por sua natureza, são predominantemente baseadas na sorte, o que as torna altamente suscetíveis a vícios e prejuízos financeiros para os consumidores. Além disso, a falta de regulamentação adequada e a ausência de políticas socialmente aceitáveis pelo jogo, contribuem para agravar essa situação.
Embora as plataformas possuam limites de saque, é perturbador notar a ausência de limites correspondentes para as apostas, revelando uma falta de coerência e responsabilidade proporcional.
É crucial destacar as consequências devastadoras que as apostas compulsivas podem acarretar à saúde mental e física das pessoas.
Além das óbvias repercussões financeiras, como endividamento e perda de bens materiais, os jogos de azar podem desencadear uma série de problemas de saúde, desde ansiedade e depressão, até convulsões.
O trauma emocional resultante dessas experiências pode ser profundamente debilitante, até levando a pensamentos suicidas, exigindo intervenção profissional urgente.
A manipulação psicológica perpetrada pelas plataformas de apostas online é um aspecto que merece atenção especial.
Estratégias enganosas, como recompensas intermitentes, design de interface envolvente e promoções sedutoras são utilizadas para atrair e manter os jogadores, explorando suas vulnerabilidades emocionais e financeiras.
A influência de celebridades e influenciadores digitais na promoção desses serviços, muitas vezes sem considerar os efeitos adversos sobre seus seguidores, é um fator adicional que contribui para a disseminação desse problema e confirmar uma possível prática saudável ou inofensividade mentirosa das casas de apostas.
Em 30 de dezembro de 2023, a Lei 14.790/23 foi sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sendo este motivo de grande comemoração para o setor, notadamente por se tratar do último marco legal antes da efetiva regulamentação das apostas de quota fixa (AQF).
O artigo 2°, da Lei 14.790/23 apresenta os conceitos interpretativos da lei, estabelecendo, para o que nos interessa, o que é aposta, quota fixa, jogo online e evento virtual de jogo online, da seguinte maneira:
Aposta: Ato por meio do qual se coloca determinado valor em risco na expectativa de obtenção de um prêmio.
Quota fixa: Fator de multiplicação do valor apostado que define o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, para cada unidade de moeda nacional apostada.
Jogo online: Canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo cujo resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, símbolos, figuras ou objetos definidos no sistema de regras.
Evento virtual de jogo on-line: Evento, competição ou ato de jogo online cujo resultado é desconhecido no momento da aposta.
A expressão “gerador randômico de números, símbolos, figuras ou objetos definidos no sistema de regras” parece descrever jogos de cassino online ou iGaming. (considerando aqui a acepção mais abrangente do termo, que contempla qualquer jogo online, desde apostas esportivas até jogos de cassino: bancados, slots e crash games).
Todavia, o artigo 3º determina que a aposta em eventos virtuais de jogos online deve ser, obrigatoriamente, de quota fixa. Isso significa que, ao contrário de apostas comuns ou jogos de cassino, o multiplicador (ODD) é conhecido no momento da aposta, sugerindo que jogos onde o apostador não sabe o multiplicador de antemão estariam proibidos.
Nos jogos de cassino, as apostas acontecem sobre um “evento aleatório emulado”, ou seja, criado para o jogo, sem qualquer relação com a vida real. O computador define o ganhador. O jogador sabe quanto pode ganhar, mas o valor varia muito a depender da combinação de resultados. Jogo do avião, do Tigre, caça-níquel, bingo, entre outros, se enquadram nesta categoria.
Isso ocorre porque, enquanto o resultado de uma aposta num site de ‘Bet’ é facilmente rastreável, ou seja, basta o apostador assistir à partida de futebol para saber se ganhou ou perdeu, num jogo cujo algoritmo é desconhecido não há como atestar a veracidade do resultado.
Em contrate à autorização legal, o jogo de azar não é palpável. Não se consegue fazer uma auditoria para saber se os algoritmos estão viciados ou se são realmente aleatórios. Não se consegue verificar se está sendo usado para lavagem de dinheiro, nem se o dinheiro está sendo repassado para os apostadores.
A literalidade da lei indica que jogos de azar, onde o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte, são difíceis de auditar.
O investimento pesado em publicidade e patrocínios por parte das plataformas de apostas esportivas no Brasil está se tornando cada vez mais comum. Essas marcas estão presentes em intervalos de jogos de futebol e em placas de publicidade dentro dos estádios, além de patrocinar times e campeonatos.
Estratégias de marketing agressivas podem contribuir para problemas de jogo, especialmente entre jogadores mais vulneráveis, resultando em perdas financeiras significativas e até mesmo na ruína financeira.
O poder de influência dos criadores de conteúdo digitais no universo dos jogos de azar é uma questão complexa, envolvendo aspectos sociais, éticos e legais. Estes influenciadores, através de suas plataformas, exercem um impacto muito grande nos seus consumidores, não apenas entretendo, mas também moldando percepções e comportamentos de seus seguidores em relação aos jogos de azar.
Influenciadores digitais encontraram em suas redes um público bastante amplo e diversificado, incluindo jovens, que são particularmente vulneráveis ao apelo dos jogos de azar, embora não sejam os únicos consumidores desse tipo de conteúdo.
O público jovem, especialmente aquele com baixo senso crítico e suscetível a ansiedade, é um alvo perfeito para as narrativas de enriquecimento rápido promovidas por influenciadores, além dos com problemas de impulsividade.
Influenciados pela ostentação de vidas “perfeitas” nas redes sociais, são seduzidos a acreditar que os jogos de azar podem ser uma solução para seus problemas financeiros ou sociais.
De tal modo que, sob o prisma protetivo do Código de Defesa do Consumidor, os influenciadores digitais que realizem qualquer forma de publicidade, ainda que tida por lícita, serão responsáveis objetiva e solidariamente ao fornecedor de produtos ou serviços, notadamente por sua atuação publicitária indevida.
É essencial implementar um controle social rigoroso dos acessos às plataformas de apostas, garantindo que apenas maiores de idade e pessoas capazes possam participar.
Além disso, é crucial que haja provas de que os algoritmos e sistemas eletrônicos das plataformas oportunizem vitórias de forma justa, evitando qualquer tipo de esperteza ou manipulação destinada a angariar pessoas vulneráveis e recursos de forma injusta.
As plataformas devem ser transparentes quanto à comprovação dos vencedores, mostrando de forma clara e verificável que pessoas reais ganharam dinheiro com as apostas. Isso ajuda a manter a confiança dos usuários e a assegurar que as práticas são justas.
Os influenciadores que promovem plataformas de apostas devem ser responsabilizados com a exigência de que compartilhem o histórico de suas apostas, incluindo ganhos e perdas. Isso garante que realmente jogam, que verdadeiramente obtém resultados positivos do seu gambling, tornando legítimas e transparentes suas promoções, de modo a não reproduzir propaganda mentirosa, apta a enganar os seguidores.
Em resumo, a ascensão dos serviços de casas de apostas destaca a necessidade urgente de regulamentação adequada e a adoção de políticas aceitáveis das apostas eletrônicas, para mitigar os impactos negativos sobre a sociedade.
Medidas como controle social, transparência nos algoritmos, comprovação de vencedores e responsabilidade dos influenciadores são essenciais para proteger os consumidores e assegurar práticas justas e seguras no setor de apostas.
*Cícero Goulart é conselheiro seccional pela OAB/GO, advogado e sócio fundador da Goulart Advocacia, especialista em Direito do Consumidor, Digital, Processual Civil e Constitucional, e Membro Consultor da Comissão de Direito do Consumidor do Conselho Federal da OAB – @cicerogoulart.adv
*Byanca Barbosa é advogada integrante da Goulart Advocacia – @byancabarbosaa