A Operação Veritas é nula desde o início

Quanto mais rebuscado é o nome atribuído à investigação criminal, maior será a probabilidade de ela ser anulada. Para além do tom jocoso da afirmação, já que investigações criminais deveriam ser processadas na mais absoluta discrição, a experiência tem confirmado a hipótese. Somente em Goiás, trabalhei em diversas investigações de nome extravagante que foram alcançadas pelo controle de legalidade e anuladas. Assim ocorreu na operação “Poltergeist” (que investigava suposta existência de funcionários fantasmas na Assembleia Legislativa de Goiás), na operação “Trem Pagador” (que investigou suspeita de crimes na VALEC), na operação “Vendilhões” (que investigou suspeita de ilícitos em entidade religiosa de expressão nacional) e na operação “Quebrando a Banca” (que investigou suposta prática de jogos de azar em Goiás).

Para provar a hipótese que lanço, chegou a mim, recentemente, consulta para atuação na defesa de investigado em outra operação de nome bizarro. De acordo com a investigação, advogados eram cooptados para transmitir recados de pessoas presas em unidade prisional de segurança máxima aos comparsas que estavam na rua e, assim, contribuir para a atividade criminosa da organização. Nome da operação? Veritas, que em latim significa “verdade”.

No caso, embora já houvesse condenação contra o consulente e uma dezena de outros advogados, bem como processado o recurso cabível, pus-me a perguntar aos diversos volumes do processo em que consistiria o elemento indicativo de crime que deu início às investigações. Foi assim que, analisando autos apensos, encontrei o registro de carta interceptada pela polícia penal e que seria entregue por advogada a membros de associação criminosa. A carta, de acordo com os investigadores, possuía mensagens cifradas que, segundo o tirocínio deles, ocultavam instruções de conteúdo criminoso.

Consequência? A carta foi apreendida e embasou representação judicial feita por autoridade incompetente para que todos os advogados daquela unidade prisional passassem a ter os seus diálogos com presos gravados e monitorados, a despeito da vedação constitucional. À representação sobreveio decisão judicial genérica que determinou, por diversos períodos, a gravação de dezenas de advogados que se entrevistaram com seus clientes, mesmo a despeito de não possuírem qualquer conexão com a carta interceptada ou ligação com a referida advogada. Investigação nula, ab initio, para também citar expressão em latim.

Controvérsia   

A questão em exame cingiu-se em aferir se a decisão que autorizou o “monitoramento dos diálogos entre advogados e prisioneiros da unidade especial de Planaltina, GO” possuía motivação idônea, apta a infirmar direitos ou garantias individuais. Como referido, se o conhecimento inicialmente descoberto pelas autoridades dizia respeito – única e exclusivamente – a uma advogada e a outros dois prisioneiros, duas deveriam ter sido as consequências lógicas, do ponto de vista investigativo ou persecutório: primeira, as investigações deveriam ter sido expandidas contra essa advogada, valendo-se os investigadores das medidas excepcionais tratadas na Lei n. 12.850/13; segunda, concluindo-se pela suficiência dos elementos colhidos – a carta apreendida, eventual representação para monitoração e gravação de diálogos em unidade prisional deveria se restringir apenas à advogada e aos dois prisioneiros, tão somente.

No caso, nenhuma das hipóteses foi levada a cabo. Como forma de “atalhar” a investigação, a polícia penal de Goiás, autoridade que, à época, não possuía capacidade postulatória para inaugurar incidente na execução penal, representou pela captação, gravação e monitoramento dos diálogos de “todos os advogados e prisioneiros da unidade prisional de Planaltina, GO”. E a juíza que recebeu a representação, o que fez? Deferiu o pedido, incialmente de forma cautelar; meses mais tarde, de forma definitiva, condicionando o monitoramento à renovação.

Certamente a decisão demonstrou, de forma clara e inequívoca, a existência de outros elementos que comprovassem a participação de outros advogados na hipótese investigativa, correto? Não, limitou-se à especular casos ocorridos noutros estados da federação, dizer que a prerrogativa da advocacia não é absoluta, e que, no caso concreto, havia suspeita de cometimento de crime por uma advogada. Trago trecho da decisão:

“Assim, em juízo sumário acerca das questões colocadas, pelo que consta nos autos, não havendo a proibição do advogado ter contato com o seu constituinte, mas somente a medida fiscalizatória por monitoração, provavelmente aplicada para fins de segurança interna e externa da unidade prisional, conforme narrado pelo Diretor-Geral da DGAP, inclusive para o fim de evitar a prática de delitos extramuros por presos, através de terceiras pessoas, entendo pertinente a autorização para eu a medida seja realizada.

Entendo, pois, que nenhum direito é absoluto, nem mesmo aqueles previstos no art. 7º, inciso III do EOAB e no art. 41, inciso IX, da LEP, de modo que, em situações excepcionais e diferenciadas, é legítimo disciplinar o seu exercício, desde que haja razoabilidade.

No caso dos autos, não é possível descartar que tenha havido a necessidade de se compatibilizar o direito à privacidade ou sigilo do preso de se entrevistar com advogado ou seu direito à intimidade com seu familiar com o resguardo da segurança pública e da disciplina no interior do estabelecimento prisional, que tem natureza especial.

Não é demais lembrar que os presos encontram-se custodiados em unidade prisional de segurança máxima, a primeira no Estado com tais características, sendo forçoso concluir que deve ser, então, regida por regras diferentes daquelas aplicadas nas demais unidades prisionais. Dentre as quais se encontra a medida de monitoramento, escuta, captação e gravação ambiental de diálogos, imagens e/ou documentos dos contatos de presos com os visitantes, incluídos os seus advogados.

[…] Ademais, não ficou evidenciado que o conteúdo das entrevistas será revelado, ou que tenha havido cerceamento do direito de defesa dos presos, ou do direito de estarem com seus familiares, ou que tenham sido prejudicados, de algum modo.

Junto disso, pelo que consta nos autos (Relatório de Inteligência ora juntado), presos têm usado de terceiras pessoas (no caso, advogada) para emanarem ordens para comparsa faccionados para a prática de delitos extramuros.

Diante disso, entendo como razoável e devidamente justificada a necessidade do monitoramento, razão pela qual o autorizo demo cautelar, por prazo determinado (evento n. 1, p. 5/8 do PDF, autos 7000011-82).

Por ser genérica e não individualizar a conduta dos destinatários da medida, a decisão pôs por terra uma investigação que, se bem conduzida, poderia ter contribuído para a elucidação de crimes. Como demonstrado, considerando que a decisão careceu de motivação idônea, não servindo como pronunciamento judicial válido, todos os elementos colhidos em decorrência são ilícitos, e, portanto, devem ser anulados, o que inclui a condenação de 16 advogados e advogadas que tiveram seus diálogos ilegalmente captados no Presídio Estadual de Planaltina, GO. Sobre o tema, o STJ tem entendido que “não se admite (sic) ordem judicial genérica e indiscriminada […] (AgRg no HC n. 435.934/RJ, relator Ministro Sebastião Reis) Júnior, Sexta Turma, julgado em 5/11/2019, DJe de 20/11/2019 sem grifo no original).

Ao caso, deve ser aplicada a regra da contaminação por arrastamento prevista no art. 157 e seguintes do Código de Processo Penal.

DGAP tinha legitimidade para representar? Havia previsão Legal? Não!

Como referido, a representação foi inicialmente deferida (cautelarmente) no dia 19/12/2019, ou seja, anteriormente à entrada em vigor da Lei n. 13.964, de 24/12/2019, que alterou o art. 3º da Le n. 11.671/08 e previu a possibilidade de gravação do diálogo entre advogados e presos em penitenciárias federais desde que autorizada judicialmente.

A medida de monitoramento foi representada pelo Diretor-Geral de Administração Penitenciária do Estado de Goiás (DGAP), autoridade administrativa que, nos termos do art. 195, caput, da Lei n. 7.210/84, apesar de figurar entre os legitimados à proposta de procedimento judicial no âmbito da execução penal, não possuía legitimidade para representar pelo monitoramento de entrevistas entre presos e seu defensor (art. 52, V, da Lei n. 7.210/84 c/c art. 3º, inciso II, da Lei n. 12.850/13).

A propósito da captação ambiental prevista na Lei n. 12.850/13, o caput do art. 3º é claro ao limitar a adoção da medida à hipótese de “persecução penal” preexistente, desde que representada por quaisquer das autoridades legitimadas, entre as quais não figurava, definitivamente, a autoridade administrativa penitenciária do Estado de Goiás.

A prerrogativa do Advogado decorre do texto Constitucional: entendam isso! 

A função do advogado é defender o seu cliente dentro dos limites da lei, e o fato de ser contratado por quem atraia a suspeita de ter praticado delito não o responsabiliza pela prática desse delito. A imposição de medidas que dificultam o exercício da advocacia aos profissionais que não estão envolvidos em atividades criminosas acaba por penalizar aqueles que não cometeram nenhum delito, o que contraria o art. 5º, XLV, da Constituição Federal.

Sobre o tema, ao enfrentar a questão formulada nos autos da extradição n. 1085/IT, o STF assim obtemperou:

Na realidade, as prerrogativas profissionais dos Advogados representam emanações da própria Constituição da República, pois, embora explicitadas no Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), foram concebidas com o elevado propósito de viabilizar a defesa da integridade das liberdades públicas, tais como formuladas e proclamadas em nosso ordenamento constitucional.

A Constituição, ao determinar que o advogado é indispensável à administração da justiça (art. 133), quis assegurar que sua atuação é voltada para a defesa dos interesses de seu cliente, respeitando os limites legais, e que não há justiça sem uma defesa plena. Nesse sentido, a decisão aqui comentada veiculou teratologia ao permitir a quebra da inviolabilidade de maneira geral, algo que somente seria permitido em situações de Estado de Sítio, conforme o art. 139, III, da Constituição. Fora dessas circunstâncias, a regra constitucional é a inviolabilidade, prevista no art. 5º, X.

Ainda – e não menos relevante, ao autorizar o monitoramento indiscriminado dos diálogos de dezenas de outros Advogados e seus constituintes, deixando de apresentar, contudo, fundamentos racionais ao afastamento dos direitos envolvidos, a decisão também consentiu com a realização de especulação probatória (fishing expedition), o que é defeso. Sobre o tema o STJ tem entendido que “as provas obtidas em buscas realizadas sem justa causa ou autorização judicial configuram violação de direitos fundamentais e caracterizam “fishing expedition”, sendo ilícitas e inadmissíveis no processo penal. (AgRg no HC n. 891.800/GO, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 16/10/2024, DJe de 23/10/2024).

Conclusão

Ante a todo o exposto, além de indicar que operações nominadas em latim têm mais propensão de anulação, o que mais eu disse ao consulente?

Primeiro: se os elementos informativos da representação apontavam para a existência de indícios de autoria ou participação em desfavor de “uma única advogada determinada e identificada”, conforme demonstrado no relatório de inteligência, a decisão que autorizou o monitoramento genérico e indeterminado de diálogos entre advogados e prisioneiros no presídio especial de Planaltina é manifestamente ilegal.

Segundo: se a decisão em questão é ilegal, também devem ser considerados ilegais, decorrência da contaminação por arrastamento, todas as provas dela derivadas, bem como todos os elementos conhecidos ou descobertos a partir da implementação do monitoramento, tratando-se questão de justiça a anulação de todo o processo que redundou na condenação de 16 advogados.

Afinal de contas, nulla poena sine iudicio.