A valoração probatória e a injustiça epistêmica no RESP 2037491 – SP

O Recurso Especial Nº 2037491 – SP, relatado pelo ministro Rogério Schietti Cruz, trata da condenação de Thiago Edvanio dos Santos pelo crime de tráfico de drogas. Inicialmente absolvido em primeira instância, Thiago foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) com base em testemunhos de policiais e na sua negativa de responder durante a fase investigativa. O ministro Schietti Cruz analisou o caso considerando os direitos fundamentais e as garantias processuais, destacando a importância de uma avaliação justa e racional das provas.

A defesa de Thiago Edvanio dos Santos argumentou que sua condenação se baseou em uma interpretação equivocada de seu direito constitucional ao silêncio, que não deveria ser interpretado em prejuízo do acusado. Além disso, a defesa ressaltou a falta de provas concretas para corroborar as alegações feitas pelos policiais, sugerindo que a condenação foi precipitada e baseada em suposições.

Injustiça epistêmica 

O ministro Schietti Cruz introduziu no seu voto o conceito de injustiça epistêmica [1], desenvolvido por Miranda Fricker. A injustiça epistêmica ocorre quando a credibilidade de um testemunho é diminuída devido a preconceitos identitários, afetando a avaliação justa da prova. Este conceito é particularmente relevante em sociedades com preconceitos estruturais, como a brasileira, onde grupos vulneráveis frequentemente enfrentam desconfiança sistemática.

No caso analisado, o ministro Schietti Cruz apontou que o TJSP cometeu injustiças epistêmicas ao supervalorizar os testemunhos dos policiais e desconsiderar a possibilidade de que o réu estivesse falando a verdade em juízo. Ele destacou que preconceitos implícitos podem levar a uma sobrevalorização de certos testemunhos em detrimento de outros, comprometendo a justiça do julgamento.

O direito ao silêncio, conforme destacado pelo ministro, é uma garantia constitucional que protege o acusado de ser penalizado por não querer se incriminar. No entanto, o TJSP interpretou o silêncio de Thiago como um indicativo de culpa, o que vai contra os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência. Esta interpretação errônea contribuiu para a condenação injusta do réu.

Crítica ao raciocínio probatório enviesado 

O voto do ministro também criticou o raciocínio probatório enviesado que deu inequívoco valor de verdade às declarações dos policiais sem a devida corroboração por outras provas. Ele argumentou que, para uma condenação justa, é essencial que as provas sejam robustas e corroboradas por múltiplas fontes, algo que não ocorreu no caso de Thiago Edvanio dos Santos.

Concluindo seu voto, o ministro Rogério Schietti Cruz decidiu pelo provimento do recurso especial, reconhecendo que a condenação foi fundamentada em uma análise inadequada das provas e na violação do direito ao silêncio. Ele concluiu pela absolvição do recorrente, enfatizando a importância de uma valoração racional e justa das provas, livre de preconceitos e injustiças epistêmicas.

A decisão foi acompanhada à unanimidade dos ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, resultando na absolvição de Thiago Edvanio dos Santos. Este caso ressalta a necessidade de uma abordagem rigorosa e equitativa na valoração das provas no processo penal brasileiro, garantindo que as decisões judiciais sejam justas e baseadas em critérios racionais e imparciais. A decisão também reflete a importância de a advocacia especializada estar conectada com os principais avanços no tema do direito probatório.

[1] Segue, em destaque, trecho do acordão: “Para o que importa à análise do presente caso, são oportunas as reflexões relativas às chamadas injustiças epistêmicas. Conforme nos ensinam os seus estudiosos, sociedades marcadas por preconceitos identitários — como, aliás, é o caso da sociedade brasileira — acabam por apresentar trocas comunicativas injustas. Por vezes, a pessoa deixa de ser considerada enquanto sujeito capaz de conhecer o mundo adequadamente pelo simples fato de ser quem é. Sobre essas situações, Miranda Fricker explica que se comete uma injustiça epistêmica testemunhal quando um ouvinte reduz a credibilidade do relato oferecido por um falante por ter, contra ele, ainda que não de forma consciente e deliberada, algum(s) preconceito(s) identitário(s) (FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press, 2007). Negros em sociedades racistas, mulheres e pessoas LGBTQIA+ em sociedades machistas, pessoas com deficiência em sociedades capacitistas são alguns exemplos de vítimas sistemáticas de injustiça epistêmica testemunhal. Indivíduos provenientes de grupos sociais vulnerabilizados têm de enfrentar o peso dessa realidade opressora nos mais diversos contextos, inclusive no contexto da justiça criminal.”