As várias facetas do ressuscitado exame criminológico

Marcelo Bareato*

Com o fito de propiciar a adequada entrada no sistema prisional, verificando a personalidade do agente, suas aptidões e predisposição para cumprir a pena e pagar por seus erros, assim como auxiliar as deliberações no sentido de progressão de regime e sua liberação, além da reinserção na sociedade, a legislação brasileira tratou de criar a figura do exame criminológico.

Inicialmente o Código Penal, nos artigos 34 e 35, trazia a indicação de que, tanto para o regime fechado, quando para o semiaberto, seria obrigatório o exame criminológico para individualização da pena, progressão de regime e para saída do condenado do sistema prisional.

Não por menos, já em 1975 ALMEIDA, Luiz Roberto de; SANTOS, Evaldo Veríssimo Monteiro dos., na obra O exame criminológico, São Paulo, Lex, 1975, pag. 47, indicavam:

Com a realização do exame criminológico, estarão respondidas várias questões que envolvem o criminoso na sua conduta antijurídica, antissocial e seu possível retorno à sociedade. Diante de tais providências, teremos o resultado das variações do caráter do delinquente manifestado por sua conduta já que o comportamento será sempre o reflexo da índole, em desenvolvimento.

Posteriormente, com o advento da reforma da parte geral do Código Penal, em 11 de julho de 1984, através da Lei n.º 7.209/84 e, simultaneamente, com a entrada em vigor da Lei de Execução Penal, Lei n.º 7.210/84, o Estado passou a entender que seria obrigatório o exame apenas para aqueles que fossem condenados ao regime fechado, sendo facultado aos demais, como os que estivessem no regime semiaberto.

Todavia, em que pese a ideia de agilizar as progressões e reinserção do indivíduo na comunidade, tornando o procedimento mais célere, fato é que com a liberação da obrigatoriedade do exame criminológico para o regime semiaberto, os Estados membros não conseguiram viabilizar a feitura em tempo razoável, nem mesmo para os que estavam direcionados ao regime fechado, seja por ausência de profissionais capacitados, seja pela não criação da Comissão Técnica de Classificação. Para se ter uma ideia, os pedidos para realização de exames dessa natureza, desde então, só fizeram aumentar e o prazo para sua realização que já, em meados de 1990, chegava a 3 (três) anos.

A demora na elaboração e entrega, para além de colocar em xeque a eficiência do judiciário, impedia que o condenado fosse encaminhado ao regime mais brando, mantendo-o na condição mais gravosa e, vez em sempre, permitindo que aqueles que já haviam cumprido o requisito temporal e possuíssem bom comportamento, viessem a falecer no sistema, vítimas de disputas entre facções, de maus tratos e até mesmo de tortura.

Com o quadro se agravando, diversos habeas corpus começaram a inundar o Superior Tribunal de Justiça e, em seguida, o Supremo Tribunal Federal, de tal sorte que se fazia, mais do que necessário, reconhecer que o indivíduo encarcerado não podia ser responsabilizado pela ineficiência Estatal, frente a não contratação de pessoal capacitado para o exame criminológico e para a viabilização das Comissões Técnicas de Classificação.

No mesmo sentido, também o Legislativo se mostrava incapaz de resolver tal situação através da criação de leis que, ao menos, minimizassem o problema. Temendo por represálias e pagamento de indenizações pelas mortes e torturas, o judiciário viu-se forçado a liberar, via remédio heroico, aqueles que já estivessem com prazo para progressão vencido e preenchessem o requisito de bom comportamento, readequando os presos ao regime que faziam jus a época.

A saída encontrada para solucionar tais questões, foi a edição da Lei n.º 10.792/03, lei esta que possibilitou ao judiciário da época, exigir dos apenados apenas o cumprimento de 1/6 da pena imposta e apresentar bom comportamento carcerário, requisitos a serem atestados pela própria direção do estabelecimento penitenciário, através da elaboração do famigerado atestado de conduta carcerária.

O atestado mostrava a tendência por agilizar os procedimentos e demorava, em média, uma semana para ficar pronto e isso possibilitava, aos advogados, em conjunto com os demais documentos que deveriam ser carreados no processo de execução, transferir aos juízes, a responsabilidade pela agilidade nas decisões.

Tratava-se, pois, de procedimento simplificado, o qual poderia ser requerido pelo advogado que atuava em favor do apenado, qualquer familiar por ele, o Ministério Público, o juiz ou até mesmo, o próprio reeducando e, este era o fator a ser considerado para maior ligeireza.

Porém, como tudo que é criado sem uma análise criteriosa sobre seus efeitos no futuro, havia um problema a ser considerado: o grande número de beneficiários e a crescente criminalidade experimentada pela sociedade, especialmente por aqueles que ganhavam a liberdade, fez com que o judiciário adequasse seu entendimento no sentido de que, para os apenados com histórico de fugas, faltas disciplinares graves, cometimento de delitos dentro do sistema, o exame criminológico voltasse ser determinado pelo magistrado, de forma fundamentada, visando aferir se ele (o apenado), de fato, absorveu a terapêutica penal necessária, independente do que dispunha o atestado de conduta carcerária. Isso derrubava a tal celeridade e novamente colocava o apenado em condição de espera para realização do exame, em média, por 3 (três) anos, como anteriormente.

Seja lá como for, com a finalidade de embasar esse entendimento e fortalecer as decisões dos magistrados, foi editada a Sumula 439 do STJ: “Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada” e a Sumula Vinculante n.º 26: “Para efeito da progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2.º da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim de modo fundamentado, a realização do exame criminológico”, ambas com o fito de minimizar o problema, já que a resolução parecia estar muito distante, se é que seria possível alcança-la.

Percebam, meus Caros Leitores que, todos os mecanismos haviam sido criados para que os Estados membros pudessem fiscalizar a execução da pena, assim como para que houvesse a absorção dos conceitos necessários por parte do apenado a fim de decidir sobre a necessidade da sua manutenção no sistema ou a progressão para regime mais brando. Neste contexto, merece destaque o artigo 182 do Código de Processo Penal, no qual, o magistrado, para decidir de forma justa e fundamentada, não está obrigado a vincular o seu entendimento a conclusão dos peritos, quando da elaboração do laudo/exame criminológico, o que lhe confere maior autonomia.

Portanto, é perfeitamente correta a ideia de que o sistema está estruturado para facilitar a tomada de posição dos juízes responsáveis pela execução, propiciando mecanismos para um efetivo enfretamento ao problema da liberação de condenados e minimização dos riscos de cometimento de novos crimes por parte dos que retornaram ao seio da sociedade, mas esquecemos que, para que o trabalho seja efetivo, também é necessário seguir a determinação da Lei de Execução Penal, no sentido de fiscalizar o sistema prisional, para que ele não se torne um antro de anomalias e degeneração.

Todavia, ao longo dos anos, essa constatação de ausência de fiscalização in loco, é percebida com frequência, por aqueles que se dedicam ao estudo do sistema prisional. Infelizmente tudo indica que, mais uma vez, estamos buscando a saída mais cômoda ao nos preocupar com o finalmente, sem atentar que o mais importante é como tratamos o apenado quando da sua entrada no sistema e o que oferecemos a ele, para que nos dê uma resposta diferente do que o embrutecimento e o desconto na sociedade dos traumas vividos no presídio.

Assim, na prática, é repassado aos ouvintes e leitores, a ideia de que o Estado, através de seus juízes de execução, está empenhado na feitura do que é certo, mas não contamos que a obrigação de fiscalizar o sistema prisional, há muito é negligenciada.  Nesta senda, os artigos 61, inciso II e 65, inciso VII, da LEP, são bastante claros ao determinar que, tanto o Ministério Público, quanto os Magistrados da execução penal, devem, ao menos 1 (uma) vez ao mês, diligenciar junto ao sistema prisional para constatar a real condição do estabelecimento e como está sendo o cumprimento da pena, entrevistando os presos de forma conjunta e individual, para terem a real percepção do que é preciso fazer, para obrigar aos que dirigem os estabelecimentos, à boas práticas no sentido de propiciar a ressocialização.

O não cumprimento do mandamento legal, como vem acontecendo, permite que por lá, se instalem verdadeiros mundos paralelos, onde o controle da execução da pena de forma justa deixa de ser prioridade, a progressão de regime com a obtenção de metas e aprendizado, saia da pauta e a recolocação de condenados na sociedade, com elevada periculosidade, seja ampliada, vez que, quem está sendo comandado (os presos), obedece o sistema do comandante (diretor geral do local), e aos estímulos errados que atualmente são passados.

Veja! Num ambiente em que o sujeito, para se manter vivo ou com sua integridade física preservada tem que aderir a uma facção, aprender a matar, lesionar, consumir drogas, suportar uma alimentação podre (ou ausência dela), conviver com maus tratos e ausência de medicamentos, nada de bom poderia causar no amago de quem, por lá passasse.

Destarte, a ausência de cultura jurídica e do dever de fiscalizar, que também é do cidadão, parece não ter fim. Estamos as voltas com a grande novidade do momento: recriar a obrigatoriedade do exame criminológico para progressão e saída do preso junto ao sistema, sem explicar quem fará, onde será feito e qual prazo máximo será admitido para a sua confecção.

Neste sentido, a Lei n.º 12.843/2024, carinhosamente apelidada por Lei das Saidinhas, ressuscita a obrigatoriedade do exame criminológico, nos seguintes termos: a progressão de pena de presos em regime semiaberto para o regime aberto passa a ser permitida apenas após resultados positivos no exame criminológico, que analisa aspectos psicológicos e psiquiátricos. Essa ressalva foi imposta por veto presidencial e ainda está pendente do parecer final das Casas Legislativas, mas, ao que tudo indica, será sancionada da maneira que está.

Não é difícil perceber que estamos, literalmente, em um ciclo vicioso, onde vendemos a população fórmulas milagrosas para composição dos “danos” causados por supostos criminosos, mas não fazemos com que a população saiba que paga por um sistema sem fiscalização, embrutecido para sobrevivência, muitas vezes antro de corrupção e que tudo poderia ser corrigido com a simples medida de fiscalização mensal, conforme estabelece a Lei de Execução, desde 1984.

Talvez nos falte mesmo, buscar mais conhecimento sobre nosso sistema jurídico e como ele rege politicamente nosso dia a dia, para entender que toda essa manobra que dispende milhões dos cofres públicos e não sai do lugar, na verdade representa apenas às várias facetas do ressuscitado exame criminológico para encobrir o que de errado insiste em ser mantido e dar continuidade ao que já foi provado que não funciona.

*Marcelo Bareato é advogado Criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, membro da Coordenação de Política Penitenciária  da OAB/Nacional gestão (2022/2025), Coordenador da subcomissão de Direitos Humanos para o Sistema Prisional  da OAB/Goiás (gestão 2022/2024) e Coordenador da Comissão Interestadual de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional junto ao Conselho Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia/GO, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).