O protagonismo do contrato de licenciamento na indústria criativa

Carol Bassin e Letícia Soster Arrosi*

Já considerado um dos maiores lançamentos cinematográficos do ano, o filme Barbie varreu as salas de cinema com uma onda de fãs saudosistas e faturou mais de US$ 1,4 bilhão nas bilheterias mundiais. Cifras estratosféricas, mas que representam apenas a ponta desse “iceberg rosa” se comparadas aos lucros obtidos através de licenciamentos.

Antes mesmo do lançamento do filme, a Mattel, marca responsável pela criação da boneca Barbie, já havia anunciado vários de seus parceiros de licenciamento, dentre marcas de consumo, mercadorias e varejo. Parceiros como Beis, Crocs, Factory Entertainment, Funko, Golden Link, Handcraft Manufacturing Corporation, Hybrid Apparel, Impala Skate, Ipanema, Innovative Designs, Komar Kids, Melissa / Grendene, Montegrappa, NTD Apparel, Nudient, Snapco, Superga, Trends International e YM Group foram alguns dos muitos “vizinhos” convidados para desfrutar dos proveitosos efeitos da “Barbieland”.

O contrato de licenciamento é um dos negócios jurídicos mais utilizados na indústria criativa, sendo uma das formas mais comuns de instrumentalizar a remuneração dos players do mercado. Trata-se de um contrato complexo, o qual pode ser comparado ao contrato de locação de coisas (art. 565 a 578 do Código Civil).

O objeto destes contratos, contudo, são bens intangíveis (que não podem ser “tocados”) e a remuneração se dá através dos denominados “royalties”. Esses bens intangíveis podem ser as obras artísticas elencadas na Lei de Direitos Autorais [1] tais como desenhos, textos, músicas, fotografias, as da Lei de Propriedade Industrial [2], como por exemplo uma marca registrada, bem como os direitos de personalidade, a exemplo do nome, pseudônimo, imagem e voz (em especial dos artistas intérpretes que, por sua vez, através de suas atuações e interpretações, são também titulares dos chamados direitos conexos aos de autor).

As obras audiovisuais são, portanto, criações coletivas e complexas, que envolvem o trabalho intelectual de várias pessoas e que geram uma cadeia de direitos e bens intangíveis a serem tutelados.

Um exemplo perfeito é o filme da Barbie interpretada pela icônica Margot Robbie. Blockbuster digno da boneca mais famosa do mundo capitalista, o filme foi e ainda está sendo criticado e comentado nas redes sociais por gregos e troianos.

Com o desafio de trazer de forma leve e divertida temas atuais que merecem holofotes, chama a atenção no impecável trabalho da diretora Greta Gerwig, a crítica ao patriarcado, aos polos masculino e feminino, e o impacto que essas diferenças e mazelas trazem às meninas que brincaram com a boneca hit nas décadas de 80 e 90.

Barbie critica também a si própria e, consequentemente, a sua corporação.  E, Ryan Gosling no papel de Ken, através de sua interpretação demonstra de forma lúdica e quase caricata a fragilidade masculina frente às mulheres de 2023.

Nesta obra podemos identificar o licenciamento de vários bens intangíveis, com destaque para as marcas, sejam as da Mattel, evidentes em vários produtos lançados pela empresa ao longo dos anos, mas também de produtos de outras empresas, os quais aparecem ao longo da produção, como por exemplo o tênis All Star, da Converse. E para além dos licenciamentos necessários para o filme em si, o próprio filme se tornou objeto de licenciamento em diversos tipos de produtos comercializados, como, por exemplo, joias, brinquedos, roupas e maquiagens.

Podemos dizer que a obra, além de um deleite nostálgico, é uma verdadeira rede de contratos, configurando uma organização empresarial em si mesma.  Se na ficção a Barbie precisou pegar um carro, trem, barco e foguete para atravessar da “Barbieland” para o mundo real, na vida real o que trouxe esse universo da boneca mais famosa do mundo para nosso dia a dia foram os diversos contratos de licenciamento, os verdadeiros protagonistas desse lucro cor de rosa.

*Carol Bassin é advogada especializada em propriedade intelectual, legislação de incentivo e proteção autoral, com experiência de atuação no suporte jurídico e estratégico ao mercado de produção cultural, mídias digitais e negociações envolvendo licenciamento de direitos. Atua como Consultora Jurídica e Business Affair junto ao agenciamento de talentos. Membro Efetivo da Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ.

*Letícia Soster Arrosi é doutora em Direito Comercial com ênfase em Propriedade Intelectual pela USP, mestre em Direito Privado com ênfase em contratos e especialista em processo civil pela UFRGS, bacharel em ciências jurídicas e sociais pela PUCRS, atuante em resolução de disputas e pesquisas referentes a consultas e litígios comerciais de Direito da Moda, Direito do Entretenimento, Direito Cível Empresarial, Resolução de Disputas e Propriedade Intelectual.

Notas

[1] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm

[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm